Jogo iluminado
Cada vez mais, estudiosos e jogadores em várias partes do mundo se dão conta da insuspeitável ligação entre golfe e budismo. É a suavidade milenar ajudando na busca da fluência e equilíbrio necessários para alcançar um jogo de alto nível
“Na verdade, não há nenhum ensinamento real para ficar remoendo. Mas, como você não acredita em si mesmo, você junta sua bagagem e vai de porta em porta, procurando os mistérios, procurando o despertar, procurando Budas, procurando mestres. Você acredita que essa é sua busca suprema e faz disso sua religião. Mas isso é como correr às cegas. Quanto mais corre, mais longe do seu objetivo você vai parar. Você só se cansa; e, no fim, de que adianta?”
O mestre zen Foyan (1067-1120) sequer imaginava que suas palavras, tantos séculos depois, seriam usadas para iluminar não apenas os caminhos de discípulos devotados ao Dharma, mas também as mentes confusas dos golfistas que penam pelos fairways do mundo. O zen – nome japonês para a tradição budista C`han, surgida na China – , cai como uma luva para os objetivos do golfe. “Trata-se de um enfoque direto da experiência viva da realidade, da vida em si mesma, sem mediação de palavras nem idéias. O zen tende para um estado concreto de consciência, em que se percebem o mistério e a beleza da vida nesse preciso momento, e com absoluta objetividade”, resume Anne Bancroft, historiadora do budismo.
Enfoque direto da experiência, objetividade… até parece alguns golfistas de elite falando, a exemplo de Ernie Els, quando diz que o swing deve “estar livre de pensamentos e sem preocupações com a técnica, apenas concentrando-se em mandar a bola até seu objetivo”; ou Bobby Jones ensinando que os movimentos devem “fluir como as águas de um rio, sem tensões ou medo dos obstáculos”.
O budismo, e em especial sua tradição zen, tem uma plasticidade tão ampla, e se adapta de modo tão admirável a tudo que existe, que é fácil transportá-lo para o golfe. Veja essas palavras do mestre zen Ummon (618-907) sobre a importância de atuar de acordo com a realidade: “Quando caminhe, limite-se a caminhar. Quando se sente, limite-se a sentar. E, sobretudo, não hesite”. Troque-se o “caminhar” e o “sentar” por “preparar-se” e “bater” e surge um mantra para vencer a hesitação, essa sombra que escurece o campo de visão do jogador mentalmente fraco.
Aqueles que aplicam o zen ao golfe querem que os jogadores finalmente desenvolvam seu potencial em campo, privilegiando a liberdade e a alegria em vez do medo e da atrofia. Essa turma tem um nome de destaque: Joseph Parent, autor do já clássico Zen Golf – Mastering the Mental Game. De modo brilhante, esse livro mescla budismo, psicologia ocidental e experiência golfística. “Zen significa ação com consciência, que é a capacidade de estar completamente focado no momento presente. A experiência zen inclui visão expandida, concentração sem esforço e libertação da ansiedade e da dúvida”, explica Parent.
Pode-se argumentar que qualquer teoria envolvendo o jogo mental fala em “concentração”, “ausência de medo” e “objetividade”. Porém, o diferencial é que o budismo explica claramente como deixar essas qualidades fluirem: são práticas mentais, cuidados no uso da linguagem e o desenvolvimento de uma visão mais generosa e menos perturbada do mundo que nos cerca. Tudo isso termina por desembocar, veja só, num swing mais fluente e num comportamento mais elegante e digno em campo.
Phillip Jaffe, instrutor profissional de Orlando, aplica as técnicas de meditação zen na hora de jogar: “Quando medito, as funções respiratória e cardíaca se regularizam. Fico livre de tensões, livre do medo, permaneço no presente. Minha mente fica pacificada. Ao chegar no tee de saída, visualizo, sem ansiedade, a tacada perfeita. Desse modo, transfiro para meu jogo a integração mente-corpo propiciada pelo zen”. Jaffe era um jogador que batia quantidades incríveis de bolas por dia, acreditanto ser esse o único meio de aprimorar o swing e o jogo. “Atualmente bato muito menos bolas, pois percebi que isso era, pelo menos para mim, um equívoco. Agora, antes de bater cada bola no range, pratico uma visualização mental e técnicas de respiração que farão a diferença quando estiver jogando. Não tenho mais pressa: agora busco a concentração, a tranqüilidade e a eficiência. Troquei a quantidade pela qualidade”, explica.
Tudo começa com a identificação do problema. Marvin Harada, jogador de golfe há duas décadas e reverendo da Orange County Buddhist Church, na California, diz o seguinte: “Quer você acredite ou não, o golfe é a pura aplicação dos conceitos budistas. O budismo ensina que os nossos problemas vêm do nosso ego. Acreditamos que a culpa é do mundo que nos cerca, das pessoas que não nos entendem; mas, em última instância, tudo retorna para a arrogância e cegueira humanas”. É nesse ponto que Harada chega ao golfe: “O ego é um dos grandes responsáveis pelos handicaps altos. Quando meu ego quer se exibir dando um drive poderoso, a bola mal passa do tee feminino. Quando eu relaxo e meu ego me dá uma trégua, bato a bola longe e reta. Porém, depois de algumas belas tacadas, meu ego quer, novamente, mostrar que é poderoso, e eu volto a bater drives tortos e curtos”.
John Hastings, ex-jogador do Tour Europeu e agora pro do Cottrell Park Golf Club, em Wales, Reino Unido, é outro golfista convencido da estreita ligação entre budismo e golfe: “Para jogar bem, você precisa compreender que não adianta buscar sua melhora nos extremos. Excessos e arrogância são atrasos na vida e também no golfe. Você precisa buscar o caminho do meio e o esvaziamento do seu ego. São essas coisas que o budismo ensina”.
Naturalmente, todas essas pessoas não estão fazendo pregação religiosa. Elas querem apenas jogar melhor, e passar adiante suas descobertas. Seja como for, o budismo está muito bem de garoto-propaganda, pois, segundo especialistas, a inacreditável concentração e firmeza de propósitos de Tiger Woods não existiria sem a ajuda do budismo. “A chave para a vida e para o golfe é foco, e Tiger tem essa chave. E não creio que é coincidência o fato de o maior golfista da história ter sido educado por uma mãe budista”, afirmou o escritor Robert Wright. O próprio Woods já declarou: “Gosto e acredito no budismo, e o aplico na minha vida particular e no golfe. Ele é um caminho completo para a vida e para o ser. Ele é baseado na disciplina, no respeito e na responsabilidade pessoal. Mas não acredito em todos os aspectos do budismo. Por exemplo, não creio que o ser humano seja capaz de atingir a iluminação completa, pois temos muitas limitações”.
E falando em limitações, a cultura zen, sempre marcada por suaves enigmatismos e um fino senso de humor, tem uma boa história sobre isso; a qual também pode ilustrar o sofrimento do golfista em busca do swing perfeito: O aspirante a estudante zen chega no templo e pergunta ao mestre: “Quero entrar para a comunidade e trabalhar para atingir a iluminação. Quanto tempo vai levar?” O mestre responde: “Dez anos”. O aspirante diz: “E se eu trabalhar muito mais e duplicar meus esforços?” “Vinte anos”. “Como assim?”, se espanta o aspirante, “Isso não é justo, se eu me esforço mais, meu tempo dobra?” O mestre suspira, e diz: “No seu caso, acho que vai levar uns trinta anos”.
Para Saber Mais
– Zen Golf – Mastering the Mental Game, de Joseph Parent, 200 págs, R$61 na São Bento Golfe, tel.: 11 – 3086 3117 (www.saobentogolfe.com.br).
– A Arte Cavalheiresca do Arqueiro Zen, de Eugen Herrigel, 90 págs, R$15. Embora não trate de golfe, é uma boa introdução à ligação entre zen e práticas esportivas, a ponto de ser citado no Golf in the Kingdom, de Michael Muphy, outra obra referencial sobre misticismo golfístico.
– Introdução ao Zen-Budismo, de D. T. Suzuki, 160 págs. Esgotado, mas fácil de encontrar no mercado de usados.
O colunista é escritor, golfista e editor da revista Golf Life.